LADO A: (11) - O blues esotérico de um talento oculto
Mais um seguimento das análises de álbuns de jazz na coluna musical de Gabriel Ferreira, agora entramos no disco "The Blues and the Abstract Truth de Oliver Nelson
Por motivos de força maior (projetos, imprevistos, entre outras coisas) não cumpri a regularidade semanal e por isso a ideia é ter duas edições esta semana (devidamente espaçadas, para não entupir tanto a caixa de entrada de vocês).
Vamos então, curtir um pouco de jazz nesta segunda invernal!
#11 The Blues and the Abstract Truth - Oliver Nelson
Oliver Nelson pode não ter sido tão famoso quanto seus pares, inclusive aqueles que colaboram no seu álbum mais importante, nem ter vivido uma história alucinante como a de Lee Morgan, Charlie Parker ou John Coltrane, mas ainda assim, logrou em deixar sua marca no jazz no que seria a última década dominada pelo gênero.
Nelson nasceu em 1932 numa família de músicos, começou a tocar instrumentos cedo, primeiro o piano aos seis anos, depois o saxofone aos onze. Com então quinze anos, começou a tocar em bandas da região, nos arredores de Saint Louis, no estado do Missouri. Já adulto, se provou um promissor arranjador, compondo para renomados músicos locais.
Em 1952, Nelson, aos 19 anos, prestou o serviço militar obrigatório, onde acabou se juntando à banda da marinha, mais especificamente, a terceira divisão, cuja base ficava no Japão. Por conta disso, eventualmente acabou atendendo à um concerto da Filarmônica de Tóquio, onde ouviu pela primeira vez Maurice Ravel. Pelo que se conta, a música de Ravel foi bastante impactante nas perspectivas de Nelson enquanto compositor: ele, que foi grande estudioso, e mesmo erudito das tradições clássicas da música europeia, percebia agora que nem tudo precisava soar como Beethoven e Bach.
Ainda revestido de uma influência de Gershwin — afinal, George Gershwin dedicou-se à embutir relances de jazz em sua modernização da música clássica nos ares americanos - Nelson retornou da marinha decidido a se aprofundar na teoria musical. Entrou para Washington University em Saint Louis, e graduou-se com o equivalente à um mestrado em música, ainda em 1958. Os leitores que acompanham nossa coluna à essa altura já sabem como o final da década de 50 e o começo da década de 60 é recheado de álbuns lendários e antológicos no cânone do jazz.
Terminada a faculdade, Nelson se mudou para Nova York, um dos epicentros da cena jazzística. Como já estamos falando dos anos 60, pode-se dizer sem exageros que a cidade era o coração do jazz, para onde músicos promissores se mudaram a fim de alcançar seu salto para a eternidade. Vimos isso com Hank Mobley, Lee Morgan, Coltrane, e basicamente todos os grandes músicos desse estilo deste período.
Desde então, Nelson não parou de trabalhar. Tornou-se arranjador de um famoso teatro no Harlem — o Apollo - depois assinou com a Prestige, para a qual produziu numa sequência imparável seis álbuns com vários grupos menores. Até que em 1960, sua carreira atingiu um novo patamar ao tocar brevemente com o grande Count Basie, e depois ainda, com Duke Ellington. Destes pesos pesados, Nelson moveu-se para a big band de Quincy Jones como saxofonista tenor para uma turnê pelos EUA e Europa.
Assim, Nelson aparecia cada vez mais entre os nomes mais celebrados da época. Talvez por isso, ele conseguiu juntar um sexteto daqueles que dificilmente se repetem pela história do jazz e produziu com eles um álbum essencial para entender a partícula mais fundamental do que fez da música moderna americana o que ela é: o blues.
Juntando a delicadeza obscura de Bill Evans, a harmonia indomável de Eric Dolphy, o ritmo de Roy Haynes, o fôlego juvenil de Freddie Hubbard, e a sempre eficiente onipresença de Paul Chambers que praticamente nunca lançou nada como líder, mas colaborou com seu baixo duplo em quase todos os álbuns que valem a pena serem ouvidos — Nelson misturou um esoterismo incipiente (mas bastante típico do jazz que estava por vir naquela década) com um resgate do blues em tempos de improvisação livre numa combinação poderosa, louvável, que faz uma banda de poucos músicos parecer uma filarmônica.
O álbum abre com a memorável Stolen Moments, originalmente coarranjada com Nelson para o disco Trane Whistle de Eddie “Lockjaw” Davis, lançado um ano anos, em 1960. A versão que ouvimos em The Blues and the Abstract Truth é certamente muito mais famosa, a bem da verdade, é a mais famosa de suas muitas versões posteriores - visto que ela instantaneamente se tornou um standard. Stolen moments soa como uma exploração de arranjos incomuns na escala de blues, especialmente a chamada Minor jazz-blues progression, estruturada em acordes menores com primeira e quinta predominantes. Os músicos a consideram especialmente obscura.
Hoe Down, track seguinte, pisa no acelerador, se aproxima do hard bop ainda cuidadosamente nos entornos desse blues adensado e atmosférico. Nela se condensam algumas influências mais clássicas do que se chamava de música (norte) americana, como as do compositor Aaron Copland. De qualquer modo, Hoe Down aparece em outros álbuns de Nelson, inclusive em Full Nelson, lançado no ano seguinte, embora esteja menos reconhecível, como que inteiramente revisada.
Cascades, a terceira faixa, é uma das minhas favoritas, principalmente por suas primeiras linhas, em que a forma mais conhecida de 32 compassos fora reimaginada em 16 compassos na escala menor de blues (primeira, quarta e quinta predominantes, para entender melhor veja este vídeo). Soa engraçada, mas também esperta e ágil, e muito divertida.
Depois, abrindo o lado B do disco, Yearnin’ traz uma nova combinação de tempo e ritmo ao álbum, como se quisesse delimitar a mudança de clima com a virada entre as faixas. Soa preguiçosa, deliciosamente preguiçosa, mas com arroubos de um apelo gospel que particularmente muito me lembra o estilo de Hank Mobley, embora Nelson seja consideravelmente menos dramático. Yearnin’ faz de Abstract Truth um álbum bem humorado - seja talvez pelo blues puríssimo que o tempera.
Butch and Butch é o momento de Freddie Hubbard brilhar em seu dueto com Nelson, um no trompete, o outro no tenor, e entre os dois, o alto sax de Dolphy. Nessa faixa, os três se alternam em solos pontuais, mas Hubbard se destaca, ainda que o público até hoje pareça reverenciar muito mais a participação do saxofonista (e que se aventurou no clarinete e trompete, diga-se de passagem). O álbum, inclusive, é considerado um dos essenciais para conhecer o estilo de Eric Dolphy - mas hoje estamos falando de Oliver Nelson.
Fechado o álbum, Teenie’s Blues acrescenta uma tensão inusitada ao que até então se desvelava como um ambiente sonoro descontraído e animado. É a faixa menos amigável do disco, inclinada num terreno liminal que levaria Nelson a se aprofundar na arte de compor. Acrescentada ao conjunto do álbum, essa faixa completa a promissora pretensão de Nelson em se apresentar como um arranjador sempre munido de agradáveis surpresas e artimanhas musicais. Apesar dos feitos alcançados nessa obra incrível, Nelson permaneceu subestimado e ofuscado pelo sucesso dos muitos outros grandes nomes da época. Para cada Coltrane, Rollins, e Brubeck, havia um Nelson, Mobley, e McLean.
Concebido pelo intrigante arranjo de Nelson, e pela impecável e polida execução de seu sexteto único, o álbum ultrapassou o nome de seu próprio criador, seja por influência de Dolphy, que ao longo da década se tornaria um dos mais importantes músicos do que ainda se chamava de jazz, seja por sua bem encaixada posição no cânone dos álbuns essenciais do gênero. Trazendo um hard bop amaciado por um blues sofisticado e temperamental, The Blues and the Abstract Truth explora a verdade abstrata que habita entre o cômico e o melancólico, entre escalas maiores e menores, entre ambientes densos e leves, entre a fama e os talentos ocultos.
LISTA DA SEMANA:
4 álbuns LGBTQIAP+:
Inicialmente a publicação original estaria planejada para ser publicada no dia 28/01. Exatamente no Dia Internacional do Orgulho LGBT. A proximidade e a importância da música como um dos veículos mais transformadores, impactantes e intensos convencionados pela existência humana ainda me traz essa necessidade de estabelecer paralelos. Ainda mais na urgência de ainda ter de se afirmar e de se fazer não soar como exceção.
1) Adrianne Lenker - Songs (2020, Domino)
Canções que não se furtam em expressar afetos, sensações e desejos numa interlocução de vulnerabilidade que em o eu lírico responde aos pensamentos e não aos filtros, quais são suas intenções e o momento em que vive em melodias ternas e melancólicas
2) Lou Reed - Transformer (1972, RCA)
A eterna arte de adentrar espaços e mensagens com a própria verdade mesmo que em algum momento você seja mal compreendido.
3) Sufjan Stevens - Javelin (2023, Ashmatic Kitty)
Luto, dores, traumas e memórias desfiguradas, imprecisas, indecisas como presas em lampejos de infelicidade e felicidade. Aquilo que restou dos nossos relacionamentos e a eterna busca por tipos de sobrevivência.
4) Secos & Molhados - Que fim levaram todas as flores? (1978, Independente)
Quando se questiona paradigmas, quando se é para além do que está posto.
PÍLULAS CULTURAIS: +LINKS
🎥 - Já tradicional no cenário audiovisual carioca, o Festival Ecrã encerrou ontem a oitava edição presencial no Rio de Janeiro e apresenta ao público obras que subvertem ou rejeitam parâmetros narrativos no cinema. Mas ainda tem Ecrã pela frente para todo Brasil, isso porque a edição online disponível no Brasil todo começa nesta quinta (04/07). Festival Ecrã
🎭🎶🎪📚🎥 - Evento cultural carimbado no estado, o Festival Sesc de Inverno está de volta, a edição de 2024 inclui 22 municípios do Rio de Janeiro. Com atrações como a nova adaptação de “A Falecida” de Nelson Rodrigues, dessa vez com Camilla Morgado no papel principal, na música shows de Jorge Aragão, Paralamas do Sucesso, Gloria Groove estão confirmado. A programação completa será divulgada nos próximos dias e acontece entre 12 e 28 de Julho. Festival Sesc de Inverno
📷 - A unidade da Caixa Cultural no Rio de Janeiro vai abrigar mostra fotográfica “World Press Photo 2024”. O evento contará com fotos de 33 fotógrafos de 25 países e abrange diversos conflitos e questões humanitárias ao redor do globo. A exposição fica em cartaz a partir desta quarta (03/07) e fica até o dia 25/08. Caixa Cultural
🎶 - A banda Cidade Dormitório se apresenta no Rio de Janeiro neste domingo (07/07) às 16:00, na casa de show Audio Rebel. O show faz parte de uma série de apresentações que ainda divulga o segundo álbum de estúdio da banda, RUÍNA ou O começo me distrai (2022). Audio Rebel
Ficamos por aqui e até breve!!