Lado B (08): A eloquente aurora de uma discografia imortal
Gabriel Ferreira fala sem remorso de esconder sua paixão sobre um nome incontornável da música mundial, John Coltrane e seu Blue Train.
Saudações! Antes de começar o texto principal da semana e desculpe reconheço que aos poucos vou entrando de cabeça como se fosse alguma persona midiática tal qual a cantora SZA ou um Agostinho Carrara da vida e da ficção (ou os dois). Tentativas frustradas e atrapalhadas à parte.
Faço mais uma mea culpa, dessa vez pela edição passada e as que não vieram. Tenho tido trabalhos e projetos pessoais que dificultaram uma constância, o texto do meu (nosso) colaborador cativo, Gabriel Ferreira, estava pronto há muito tempo (porém existe um processo para além da elaboração textual que exige mais tempo) e sendo assim, falando em português claro, - Não dei conta.
Apesar desse b.o e do transtorno inexorável do descumprimento de prazos. Estou comprometido no propósito de tocar esta newsletter que vós ledes (rs), não farei mais promessas. Porém é da minha vontade ter uma vida longa ainda neste domínio. - Só peço paciência e o trabalho aqui continua.
Agora chega de papinho.
*COLUNA MUSICAL DE GABRIEL FERREIRA - #9 Blue Train - John Coltrane.
Jazz sem Coltrane é como filosofia antiga sem Platão. É a história da Modernidade sem a Revolução Francesa, é o cinema sem Eisenstein, futebol sem Pelé, é Igreja Barroca sem um grama de ouro.
Ao lado de Miles Davis e Charlie Parker, o homem é um dos pilares essenciais do jazz e da música moderna do século XX. É imensurável a perda de quem ouve jazz sem esbarrar em Coltrane - caso isso seja possível!
Tendo colaborado com praticamente todos os grandes músicos de jazz dos anos 50 e 60, Coltrane colecionou não menos que cinquenta gravações de estúdio como líder. Foi, ao lado de Davis, um dos pioneiros do uso de modais, mas depois embarcou na audaciosa jornada de Ornette Coleman na busca pela libertação radical da amarras tonais na música ocidental, que desembocou no improviso livre e coletivo, conhecido na década de 60 como free jazz. Neste ponto, sua carreira passou a abraçar temas esotéricos e espirituais, que inclusive serviriam de base para a imersão de muitos artistas no fusion, já na década seguinte (mérito que compartilha com Joe Zawinul).
Mas isso foi depois de onde vamos parar hoje: no álbum Blue Train, de 1957.
Então voltemos ao começo.
Coltrane nasceu na Carolina do Norte, e se envolveu com música no ensino médio, tocando clarinete e corneta. No final da década de 30, perdeu seu pai, tia e avós, e acabou criado quase somente pela mãe. A situação ficou um pouco apertada, de forma que a família se mudou para a Filadélfia para arrumar trabalho. Tendo se formado na escola, Coltrane arrumou emprego numa refinaria de açúcar, e pouco depois, aos 17 anos, ganhou seu primeiro saxofone - para o qual migrou, assim como muitos jovens de sua geração, por influência de estilos inspirados em Lester Young.
Já em meados dos anos 40, Coltrane entrou para uma escola de música e não tardou a arrumar trabalho: formou um trio com outros músicos da área para tocar em eventos. Mas sua trajetória iria virar 180 graus ao vivenciar a catarse mais clássica e intensa possível para qualquer aspirante a músico de jazz ali no meio da década de 40: ver Charlie Parker ao vivo.
“A primeira vez que vi o pássaro [The Bird] tocar, fui atingido no meio dos olhos”, disse ele.
Mas como bem sabemos, nessa época a Segunda Guerra Mundial assolava as nações pelo globo, e, tentando escapar de uma convocação do exército, Coltrane se alistou na marinha, onde acabou reconhecido como músico mesmo sem ter o ranking para tal, e ingressou na banda de swing da base militar em que estava alojado. A banda, no entanto, era toda formada por brancos, então Coltrane precisou ser tratado como músico convidado para não acabar encrencado com os oficiais.
Findada a guerra, Coltrane foi dispensado de suas obrigações e usou um benefício que o governo americano concedia aos veteranos para ingressar em outra escola de música, onde aprofundou seus estudos teóricos.
No final da década de 40, a cena de jazz estava um rebuliço com esse tal de Charlie “The Bird” Parker e sua gangue de lunáticos apresentando formas até então incompreensíveis de se usar um instrumento. Do dedilhado escorregadio de Bud Powell sobre o piano, até o frenesi incansável de Max Roach na percussão, Charlie Parker e Dizzy Gillespie mudavam o que se sabia por jazz em todos os lugares pelos quais rasgavam suas harmonias imprevisíveis em alta velocidade.
Um pianista bastante fascinado pelo bebop foi Haaan Ibn Ali, que apesar de nunca ter sido muito famoso fora da Filadélfia, marcou Coltrane profundamente. Hasaan foi desses músicos cuja carreira começou em passos muito convencionais, mas que, no ápice, já soava de forma totalmente nova, estranha, evocativa, e, para alguns, até mesmo detratora e insolente.
Já íntimo do bebop, Coltrane praticamente surtou ao conhecer Hasaan. Ficou obcecado com o estilo do músico, e Jimmy Heath conta que, daí para frente, Coltrane passou a estudar 25 horas por dia. Dormia com a corneta na boca, treinava dedilhado sobre um saxofone invisível, às vezes passava horas soprando a mesma nota.
No começo dos anos 50, Coltrane já dividia o palco com seus ídolos, se apresentando ao lado de Gillespie e Parker, além do famoso colaborador da Big Band de Duke Ellington, Johnny Hodges. Aliás, foi Gillespie quem fez Coltrane trocar o alto sax pelo tenor.
O período seguinte é quando efetivamente começa a carreira de Coltrane como um reconhecido nome do jazz: 1955 até 1967, quando o bebop já não era mais novidade, e o hard bop estava à todo vapor nas mãos de uma geração de jazzistas criados no estilo, juntamente com outros formatos pós-bebop que davam continuidade à vibrante jornada do jazz pelas grandes cidades americanas.
Porque foi logo nesse ponto em que Davis chamou Coltrane para trabalhar.
Embora a genialidade e importância de Davis hoje nos seja incontestável, esse monstro da música passou por um período de reputação enfraquecida pelo vício em heroína, sempre ela, essa praga branca que devastou as comunidades negras das grandes e pequenas cidades do país inteiro durante boa parte da segunda metade do século passado.
Mas Davis estava se reerguendo, voltando à ativa e prestes à montar um quinteto. E que quinteto! O cara chamou o pianista de dedos pesados Red Garland, o baixista faz-tudo Paul Chambers, e Philly Joe Jones na bateria. Faltava Coltrane no tenor.
“Depois que começamos a tocar um pouco, eu sabia que esse cara era um filho da puta sinistro”, Miles Davis
Este que foi considerado o “Primeiro Grande Quinteto de Davis”, dos quais alguns outros se sucederam, acabou desfeito depois de quatro álbuns de sucesso, porque agora foi a vez de Coltrane de se viciar em heroína. Mas já em 1957, Coltrane iria trabalhar com o grande e reservado Thelonious Monk, numa colaboração que resultaria no excelente Thelonious Monk Quartet With John Coltrane at Carnegie Hall.
Entre Monk e o retorno para Davis, Coltrane gravou, num acordo com a Blue Note, Blue Train, ainda em 1957, seu primeiro álbum como líder, com Lee Morgan no trompete (então com 19 anos), Philly Joe Jones na percusão, Chambers no baixo e Curtis Fuller ao trombone. Kenny Drew, o pianista, havia acabado de colaborar com Buddy Rich e Milt Jackson mas Fuller e Morgan, nesse ponto, ainda eram relativamente desconhecidos. Morgan lançou naquele mesmo ano The Sidewinder como líder, mas só em 59 ele estouraria pela sua participação no álbum Moanin’ de Art Blakey.
O álbum do final dos anos 50 abre com a faixa de mesmo nome, e transcorre por um blues melodioso e denso, revolto nas camadas sonoras do trombone de Fuller com o trompete de Morgan. Blue Train, assim como Moments Notice e Lazy Bird, se tornariam standards do jazz. Das faixas do álbum, somente I’m Old Fashioned não foi escrito por Coltrane - já era ela própria um standard da época.
Moments Notice é uma obra de jazz modal disfarçada de hard bop. Nas trocas de acordes e tons que nela se alternam em progressão, pode-se perceber fundamentos musicais de Miles Davis e McCoy Tyner, tão comprometidos com a expansão do léxico tonal através de harmonias modais.
O álbum transita entre a atmosfera de Birdland onde reinou Parker, e um olhar para o que havia de novo, já no lado do hard bop e das experimentações de jazzistas mais jovens. Isso fica evidente no trio “Blue Train - Moments Notice - Lazy Bird”, onde brilham os músicos ao redor de Trane.
Blue Train é considerado por muitos a obra prima de John Coltrane em sua exploração pelo hard bop. Mas, mais do que isso, o álbum deu início à um período em sua carreira que se estenderia até sua morte, em 1967, e que deixaria para o mundo verdadeiros marcos da música moderna, como A Love Supreme e Giant Steps.
Sendo um dos mais famosos álbuns de jazz e certamente figurado entre os essenciais do hard bop, Blue Train é um ponto alto de um ano já muito recheado de obras que juntas, e cada qual à sua maneira, expandiram as barreiras e os alcances do jazz enquanto realização musical e alçaram Coltrane à um patamar de artista sobrehumano e maior que a vida.
**LISTA - 5 ÁLBUNS PARA OUVIR NO TEMPO NUBLADO
As chuvas de março igual aquele amigo chato que chega na sua casa umas 22h da noite, te avisando sem cerimônia, quando você já tá deitadinho pronto para cair nos braços de Morfeu, barulhento e fazendo estrago.
Pelo menos o tempo virou e não está aquele calor infernal, por enquanto, seguindo o ritmo das estações, compartilho cinco álbuns para aqueles dias mais pacatos… Algumas escolhas vão ser bem óbvias, outras talvez nem tanto.
Acho que o legal são essas possibilidades de passear entre cânones, gostos e tendências, não como um reflexo do que é para ser consumido, mas uma porção de sensibilidades, referências e caminhos pessoais (mesmo que subjetivados)
Os álbuns estarão com links no título para quem quiser escutar.
***PÍLULAS CULTURAIS - LINKS DE CULTURA
Depois de dois blocos de cultura e algumas semanas ausente. Os links de eventos e dicas culturais de diferentes volta a dar às caras por aqui. Segue abaixo.
🎥 - Quem for/estiver no Rio de Janeiro em abril e gostar de cinema, tem um ótimo motivo para ir ao centro do Rio de Janeiro. A Cinemateca do MAM preparou uma programação com 20 filmes da África Ocidental, entre eles Mandabi, Hienas, Sarraounia, Touki Bouki e muito mais!. Fonte: ( Rede social “X/Twitter” do programador, Ruy Gardnier)
🎥 - Ainda no cinema, o Festival É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, bate na porta de nós sudestinos, mas não apenas no Rio, como também em São Paulo a partir do dia 03 (Próxima quarta). A programação, gratuita por sinal, está recheada com retornos de Helena Solberg (na abertura carioca), além de outros títulos promissores e homenagens (Robert Drew, Mark Cousins, Thomaz Farkas). Segue a programação oficial. Fonte: (Site do “É Tudo Verdade”)
🎥 - Quem também ganha mostra no CCBB Rio de Janeiro também no dia 03 é o titã da indústria hollywoodiana, Al Pacino, a organização não vai se restringir a exibição dos títulos com o ator, mas também traz cursos e debates, apesar de não ser inteiramente gratuita (os filmes custam R$10 e R$5 para meia-entrada) é uma boa oportunidade de assistir grandes títulos da história do cinema, como Um Dia de Cão, Fogo contra Fogo, Parceiros da Noite, a trilogia “O Poderoso Chefão”, até títulos mais recentes e de menor prestígio. Mais informações. Fonte: (Site do “CCBB”)
🎥 - A última recomendação cinematográfica do dia, é uma proposta de sessão de curtas temáticos sobre os 60 anos da Ditadura Militar. São filmes de diferentes épocas e momentos que servem não apenas como um memorando, mas mostram como o poder da linguagem cinematográfica nos emancipa socialmente mesmo nos momentos mais sombrios e difíceis. Meio Dia (Helena Solberg, 1970), Exposed (1978, Edgar Navarro), A Torre (Nádia Mangolini, 2017), Atordoado, Eu Permaneço Atento (2019, Henrique Amud, Lucas H. Rossi). Fonte: (Vimeo, Youtube)
🎶 - A artista, Lua Viana, mais conhecida pelo nome de trabalho “sonhos tomam conta”, lançou hoje (dia 29/03), um novo álbum, “corpos de água”, incorporando influências de gêneros como samba, bossa nova, folk e sonoridades habituais como o shoegaze e post-rock. Destaque para as faixa-título do álbum e “de areia e sal”. Ouça aqui. Fonte: (Bandcamp da artista)
🎭 - “Retratar pessoas que só desejam ser o que realmente são”, é pelo viés humanista e sincero que a peça “Angu” sobre histórias paralelas de pessoas negras e gays na sociedade. A dramaturgia e direção é de Rodrigo França, e encenada por Alexandre Paz e João Mabial, em cartaz até o dia 23 às segundas e terças. Fonte: (Sympla)
Por hoje é só, feliz páscoa, e até breve!