LADO A: (10) - O louvor de um mestre subestimado
Conversas sobre cânones, paixões, interpretações, e claro, muita música. É isso que propõe Gabriel Ferreira em mais uma coluna para o Lado A sobre álbuns e percursos do jazz
Estamos de volta! Outro elemento que retorna são os formatos de listas e pílulas culturais. Como apresentado anteriormente teremos muita música, sensações e paixão! Sem mais delongas segue o texto de Gabriel Ferreira:
#10 Soul Station - Hank Mobley
Hank Mobley prova como os novatos talentosos vindos de lugar nenhum estão destinados a cruzarem, mesmo que violentamente, com os grandes nomes de seu próprio tempo, no efervescer acelerado de um gênero em constante transformação. Com seu estilo suave, posicionado no choque entre a eloquência de Sonny Rollins e Coleman Hawkins e a sutileza descolada de Lester Young, Mobley atraiu para si a atenção de Dizzy Gillespie e Max Roach não muito tempo depois de começar a se apresentar em Nova York.
Criado em Nova Jersey, o músico inicialmente experimentou o piano por algum tempo, mas ao ser acometido por uma enfermidade e passar meses preso em casa, ganhou um saxofone tenor de sua mãe para passar os dias. Apaixonou-se pelo instrumento e tentou ingressar numa escola de música na cidade, mas foi rejeitado, passando a estudar teoria musical e harmonia por conta própria, usando livros dados por sua mãe.
Dali para Nova York, aos 19 anos, já estava colado em Max Roach, que a partir de 1951 o introduziu a músicos e ambientes da cena jazzística da cidade. Nesse período, se dedicou à compor suas próprias músicas e em 1953 substituiu um saxofonista na banda de Duke Ellington por duas semanas - e acabou ouvido por um dos seus ídolos, o ícone de todos, Charlie Parker, que o aconselhou com um de seus mais conhecidos mantras: “Baby, é melhor que você aprenda o tal do blues, não se pode tocar blues o suficiente”.
Naquele mesmo ano, Mobley colaborou com Roach num álbum, mas depois se encaminhou para o baterista Art Blakey, então à frente dos Jazz Messengers (que era ainda mais um coletivo do que uma banda). Juntos, convocaram o renomado Horace Silver, que, ao lado de Bud Powell, seria um dos pioneiros do hard bop ao piano, além de Doug Watkins, o competente baixista famoso pelas colaborações com Sonny Rollins, e o trompetista Kenny Dorham. As seções produzidas pelo quinteto resultaram no lendário álbum Horace Silver and the Jazz Messengers.
Como vimos na coluna sobre o álbum Moanin’, de Art Blakey1, lançado em 1959, os Jazz Messengers eram quase uma escola de hard bop, pela qual músicos passavam para se catapultarem em brilhantes carreiras solo. Mas a geração de Silver e Mobley não durou muito, embora os dois continuassem a colaborar mesmo após saírem do grupo, período em que lançaram três álbuns. Mobley, no entanto, retornou aos Jazz Messengers no final da década de 50 e logo assinou com a Blue Note.
Nessa época começaram as grandes colaborações de muito sucesso e prestígio: Lee Morgan2, Donald Byrd, Art Farmer, Kenny Dorham, Jackie McLean, Milt Jackson, Sonny Clark, Bobby Timmons, Herbie Hancock, Wynton Kelly, o onipresente Paul Chambers, e Philly Joe Jones. Um ano depois, deixou os Jazz Messengers novamente, foi substituído por ninguém menos que Wayne Shorter e lançou como líder um trabalho atemporal na história da música, o álbum Soul Station.
Com um elenco marcado por uma sutileza competente, com Mobley ao tenor, Blakey na percussão, Chambers no baixo e Kelly ao piano, Soul Station é certamente a obra prima deste saxofonista subvalorizado. O álbum não quebra nem responde às formas conhecidas dos estilos em voga, mas as executa com uma elegância triunfal, cuja capa, com Mobley segurando orgulhosamente seu tenor, faz jus sem grandes exageros.
Há uma atmosfera de otimismo persistente ao longo das faixas, digno de um espírito inquebrável. Remember é uma releitura de uma música muito mais antiga, e originalmente muito mais melancólica e desesperada, mas no balanço de Mobley e no dedilhado de Kelly ritmado pelo inconfundível swing de Blakey, a faixa se apresenta sorridente, abraçada por uma calorosa nostalgia de algo que poderia ter sido melhor, mas que foi bom o suficiente.
This I Dig For You vem à seguir, uma composição que sorri pelos dedos de Kelly e que denota toda a maestria de Mobley em solos de velocidade média numa era em que os jazzistas aceleravam cada vez mais. De modo geral, o som dessa faixa soa clássico, como se já soubesse que assim o seria na posterioridade.
Depois se sucede a faixa Dig Dis, introduzida por Kelly e logo sobreposta pelo tenor de Mobley numa conversação cuja evidência é justamente o ritmo que tanto marca o transcorrer do álbum, um pacing consistente de idas e vindas entre o saxofonista e o resto da banda, sem pressa, mas com certeza muito comprometido. É este mesmo ritmo que emana a estilosa aura de uma obra orgulhosa de si própria. Fica muito claro que nessa seção a banda compartilhou da visão de Mobley, que compôs quatro das seis faixas de Soul Station.
Split Feelin’s é minha faixa favorita e a que considero a mais espirituosa do álbum. Com toques de gospel e uma mística sutil disfarçada de intimismo, essa faixa apresenta o que considero ser o melhor solo de Mobley, talvez igualada somente pela própria Remember ao começo do disco. O saxofonista parece feliz, tudo soa alegre, mas há um relance de apelo aos dias melhores que estão sempre por vir. Uma sensibilidade calibrada consegue ouvir uma oração ao começo e ao final dessa composição brilhantemente ornada pelo talento de Blakey.
Soul Station é a maior faixa do álbum, e, em primeira ouvida, acredito que seja a mais memorável. É fácil de ouvir, é estática, e segue à risca o modelo que Blakey e Silver começaram anos antes e chamaram de hard bop. É gospel, melódica, tranquila, sem gritos nem sussurros, apenas diálogos harmônicos que não enfrentam perigo algum e que se resolvem ao seu próprio tempo - o tempo que permeia a obra inteira.
Por fim, If I Should Lose You encerra o álbum com outra releitura, encaixada no conjunto do disco como se tivesse sido composta pensando nos seus temas modernos: a superação do sofrimento, do vício, dos problemas, da luta, que permeia o blues (o blues ao qual se referia Parker). Não deve ser coincidência a ubiquidade azulada que colore a capa de Soul Station. A faixa oferece uma conclusão leve, alinhada, como se não deixasse pontas soltas.
Com essa execução impecável da visão de um músico que nunca quis reinventar a roda, mas rodá-la por caminhos já conhecidos, talvez com um pouco menos de pressa, com uma eloquência menos exaltada, ainda que de forma alguma contida, Mobley se provou digno de um reconhecimento que nunca recebeu, fruto talvez de sua infeliz estadia no quinteto de Miles Davis. Mas isso é história para outro dia!
Soul Station é um álbum essencial para se compreender hard bop enquanto estilo, mas também para flertar com as ideias dos músicos subestimados cuja genialidade se ofuscou no sucesso de colossos como Sonny Rollins e John Coltrane. Atemporal, fácil de ouvir, faz tudo que é complicado parecer fácil - diferente de Coltrane, que fazia as coisas difíceis parecerem impossíveis. Estará para sempre posicionado entre as obras primas do jazz, imortalizado pela mente de um músico que, sem pretensão alguma, ajudou a dar forma ao estilo que dominaria toda aquela década.
LISTA DA SEMANA:
5 músicas lançadas na semana:
BRAT de Charli XCX foi o evento da semana que movimentou a cultura pop de forma geral atraindo diferentes setores sociedades e gerando inúmeras memes e comunicações em massa considerando uma presença inconfundível e difícil de ignorar. Entre outros lançamentos está KAYTRANADA em uma faixa dançante e musical, Fax Gang e Parannoul em mais uma colaboração reafirmando uma sonoridade bem estabelecida, Paira, novidade da Balaclava Reports, e apresenta no primeiro registro de inéditas uma amálgama de gêneros e experimentações, mas ainda em um lugar familiar e seguro. numa experimentação intrigante, além de Raveena que defende com elegância um R&B moderno e bem produzido com a presença do ótimo JPEGMAFIA:
PÍLULAS CULTURAIS
🎫🏳️🌈 - No mês do Orgulho LGBTQIAPN+, o Festival Presença, que acontece anualmente, promove atrações que de inúmeros segmentos artísticos com a finalidade de fomentar visibilidade, destaque e prioridade também para artistas mulheres, indígenas, pessoas pretas e pcds. O evento acontece no Circo Voador, CMDC Gávea e Teatro Cesgranrio. Confira a programação completa no site que vai até o domingo (09/06) - (Presença Festival)
🎶🎷 - Até este domingo (09/06), o Festival I 🧡 PRIO Blues & Jazz Festival continua a todo vapor gratuitamente no Jockey Club na Gávea. Apesar de estar acabando e sem a possibilidade de reservar ingressos (os interessando terão que comparecer em outra fila no dia do evento), o festival ainda reserva as apresentações de Azymuth, Paulinho Moska e Rodrigo Suricato com a participação do músico Nelson Farias em todos os shows. - (I 🧡 PRIO Blues & Jazz Festival)
🎶👨🍳 - Outra possibilidade dos cariocas de aproveitar mais um festival gratuito neste final de semana, também na Zona Sul. Trata-se do Festival Harmonia que mescla música e gastronomia e terá apresentações de nomes como Leoni, Toni Garrido e Diogo Nogueira, vai até domingo.
🖼️🇧🇷 - 206 anos de Museu Nacional. Um dos principais patrimônios culturais do Rio de Janeiro é celebrado com rodas de samba, o público poderá ter contato com acervo científico e sociocultural. Além de ter contato com exposições fotográficas sobre a reestruturação do local após um incêndio em 2019 - (Diário do Rio)
🎫📰 - O Rio2C, um evento de economia criativa está acontecendo desde a última terça, (04/06) e vai até este domingo. Apesar do alto valor de investimento e a inacessibilidade, veículos como Portal Exibidor e Imprensa Mahon, que atua no Youtube e Instagram, estão cobrindo o evento com conteúdos regulares. - (Portal Exibidor, Imprensa Mahon)
▶🖥️ - Para assistir no final de semana reservamos a recomendação de adições recentes nas respectivas plataformas: Blue Jean no Mubi, Sem Coração na Netflix, Pacific Club no Le Cinèma Club e Lapso no Porta Curtas
Texto com o trabalho de Lee Morgan no álbum “The Sidewinder”
Ficamos por aqui hoje, obrigado pela leitura! Bom final de semana.
Amei!! Jazz e pílulas culturais p informar e entreter!