Lado A: (12) - O hard bop revitalizado com tempero latino
Encerramos nossa passagem por álbuns de hard bop com o vigor de Horace Silver. Nas listas um pouco do espírito olímpico e as pílulas são conduzidas por um ritmo eclético
#12 Songs for my father - Horace Silver
Horace Silver foi um dos nomes mais proeminentes do Hard Bop, e nada mais justo que encerrarmos nossa exploração do gênero através de sua magnus opus, Song For My Father. Inicialmente, eu havia planejado comentar a respeito de Breaking Points, do trompetista Freddie Hubbard, mas agora acho que ele vai se encaixar melhor numa lista sobre free jazz.
Dito isto, fiquemos então com Silver, filho de uma americana de Connecticut com um descendente de portugueses emigrado de Maio, uma das ilhas de Cabo Verde, arquipélago africano que havia sido colônia de Portugal. Talvez por isso, Horace Silver tivesse sustentado ao longo de sua vida um genuíno interesse pelas culturas do “além mar”, na África, América do Sul e Oriente Médio. Suas obras comumente incorporaram esses ritmos então exóticos no âmbito do blues estadunidense, do qual, como a maioria dos seus pares, jamais se descolou.
Silver começou a tocar ainda criança, e teve aulas de música clássica. Seu pai, claro, o ensinou bastante sobre músicas populares de Cabo Verde, onde matrizes portuguesas e africanas se chocavam num ritmo carregado de semelhanças com estilos latinos. Mas antes de se apaixonar pelo piano, influenciado principalmente por Bud Powell e Theloniuous Monk, Silver ainda aprenderia a tocar tenor, embalado pela adoração à Lester Young. Chegou a se apresentar como tenor na banda e orquestra de sua escola durante o ensino médio, e daí para gigs profissionais em clubes e bares foi rapidinho.
Rejeitado no serviço militar por ter uma coluna demasiado curva - o que o atrapalharia bastante com instrumentos de sopro - passou o final da década de 40 tocando profissionalmente pelas maiores cidades de Connecticut, mas continuaria anônimo até formar um trio que acabou sendo ouvido por Stan Getz. Naquela época, durante a virada para os anos 50, o jazz se dividia entre músicos que buscavam incorporar mais explicitamente elementos de raízes africanas, e músicos que procuravam modelar um som mais relaxante e descontraído, que passou a ser conhecido como cool jazz e acabou encabeçado pela turma de Dave Brubeck (para o desgosto de Miles Davis, que também experimentou com o formato, vide The Birth of the Cool).
Getz era mais chegado no cool jazz e ainda naquela década iria fazer o mesmo que Silver: viajaria ao Brasil para conhecer de perto a algazarra latina. Getz trouxe para cá o jazz, e em seus intercâmbios com João Gilberto, levou para lá a Bossa Nova. Silver também conheceria o apelo da bossa nova, e é notável como ele a estudou em Song for my Father, especialmente na faixa-título, que também abre o álbum.
A colaboração com Getz só duraria um ano. Silver acabaria substituído como pianista após gravar seu debut com Getz, mas, agora olhando para frente, querendo dar um novo passo na carreira, rumou para Nova York, claro. Lá, arrumou bastante trabalho como músico freelancer, e, vejam só, esbarrou em seus ídolos, os maiores pilares da arte tenor da década anterior: os antagônicos Lester Young e Coleman Hawkins. Trabalhou com ambos, e depois ainda passou um tempo colado em Lou Donaldson, que o ensinou muito sobre bebop. Donaldson estava gravando para a Blue Note, e chamou Silver, junto com Gene Ramey no baixo e Art Taylor na percussão, completando a banda. Isso foi em 1952, e no final daquele ano, Taylor acabou substituído por Art Blakey. E aí o resto é história: juntos, Blakey e Silver fundaram os Jazz Messengers.
Mas antes, Silver ainda teria tempo de ser um prolífico sideman. Tocou com Al Cohn, Art Farmer, Miles Davis, Milt Jackson, e no famigerado Newport Jazz Festival (o maior e mais antigo festival de jazz dos EUA e possivelmente do mundo) tocou no lugar de John Lewis para o prestigiado Modern Jazz Quartet.
Como já vimos, a era de Silver nos Jazz Messengers foi acompanhada por um pessoal de peso, ainda que na época, eram todos muito menos famosos. Os dois primeiros álbuns do grupo contam com Hank Mobley, Doug Watkins e Kenny Dorham. Esses discos são considerados essenciais para a concepção do hard bop como um estilo distinto dentro do cânone do jazz.
O problema que a maioria dos músicos do Jazz Messengers tinha com heroína (em parte por culpa de Blakey) acabou afastando Silver. Em 1956, após um ano e meio e três álbuns muito bem sucedidos e recheados de standards, deixou o grupo e formou um quinteto com ex-integrantes dos Messengers, que seguiram sua deixa (Mobley, Watkins, Farmer, e Louis Hayes). Com eles, a reputação de Silver continuou aumentando, ofertas de trabalho explodiram, contratos surgiram, tours internacionais, tudo incluso. Assumido como proeminente compositor, Silver estava criando música até para comerciais de TV. Mas o pico de sua carreira ainda estava por vir com o antológico Song For My Father, escrito após as três semanas que Silver passou no Brasil em 1964.
O álbum, na verdade, foi lançado durante um período de transição entre as muitas formas que seu quinteto tomou. Por conta disso, um lado foi feito por um grupo, enquanto o outro, é creditado à uma banda quase inteiramente reformada.
A faixa-título abre a lista em ritmo de bossa nova trazida diretamente do Rio de Janeiro, muito bem ilustrada nas mãos de Roger Humphries sobre a percussão. Já no meio da música, Joe Henderson brilha em seu solo de tenor trazendo com tudo o que lhe cabia no jazz. No geral, Song for my Father traz um ritmo dançante, mas calmo, e bastante leve, dando o tom de uma coleção bem espirituosa.
The Natives Are Restless Tonight, vindo em seguida, parece uma espécie de segundo movimento da faixa anterior, com a diferença que agora é o trompete de Carmell Jones que preenche ágil e brilhantemente os solos ao longo da música. Embebida no hard bop que remonta aos anos com Blakey, a faixa é rápida, longa, alegre e festiva.
Calcutta Cutie, soa como a terceira parte de uma trilogia, principalmente pela belíssima introdução do próprio Silver, que remonta ao começo da faixa-título. Aliás, todas as músicas foram escritas por ele, menos The Kicker, composta por Henderson. Em Calcutta Cutie, o protagonismo é de Silver e seu blues escorregadio sobre o piano. Seu estilo envolve uma alternância tênue e magistralmente sutil entre ritmos parecidos, agora acompanhado por Roy Brooks na percussão. É a mais silenciosa dentre as músicas do álbum, dada a ausência do tenor e do trompete quase até os minutos finais, e apesar do trovejante solo de Brooks pouco antes dos sopros. Vale notar, as linhas de Junior Cook no tenor e Blue Mitchell no trompete estão entre as minhas favoritas em todo o jazz.
Em seguida, The Kicker se introduz como um pontapé, contrastando violentamente com o ritmo de Calcutta Cutie. Ela retoma a agitação do começo do álbum, mas é mais pura, menos eclética, contida no jazz novaiorquino mais característico do fim dos anos 50.
Por fim, Lonely Woman encerra o álbum com uma distinguível sensibilidade, com o toque dourado de Silver, e suas melodias que, por tantos anos, beberam de Powell, mas que dele se afastaram gradualmente ao longo da década de 60. Em Lonely Woman, Silver parece mais próximo de seus pares, especialmente McCoy Tyner e Bill Evans. No ápice da carreira, a última música de Song for my Father mostra seu amadurecimento como músico, e, mais do que isso, como Silver logrou em encontrar seu lugar entre os grandes da cena.
Song for my Father é uma homenagem completa ao pai de Silver, mas também ao hard bop como um estilo ainda fresco, mesmo que revitalizado pelo tempero latino da bossa nova, do qual o jazz jamais fez desfeita - e vice versa. Repleto de standards, é essencial para apreciar o que deu forma ao jazz que ouvimos hoje, tão marcado pelos anos 50 e 60. E com isso, concluímos também nossa lista sobre os álbuns de hard bop! Ou seja, faremos um interlúdio na próxima publicação, antes de partirmos para outro dentre os muitos estilos que compôem o jazz.
Para recapitular, nossa lista foi:
Saxophone Colossus - Sonny Rollins
The Blues and the Abstract Truth - Oliver Nelson
Song For My Father - Horace Silver
Espero que tenham gostado da seleção! Ouvindo cada um desses álbuns, é possível ter uma boa visão das tendências que atravessaram aqueles anos em que o jazz predominou na vida noturna das grandes cidades, nos clubes e bares, e claro, nos estúdios. Mas ainda há muito a explorar: afinal, o que fez do bebop um movimento tão revolucionário nos anos 40? E como evoluiu o free jazz ao longo dos anos 60? E onde foi parar o cool jazz que se tocava junto com hard bop? Quem sabe, as poucos, possamos responder a tudo isso ouvindo nossas recomendações atemporais.
LISTA DA SEMANA:
5 Apresentações em Olimpíadas.
É difícil contornar um evento de proporções globais (e confesso que sou suspeito, pois amo este período). Sendo assim trago resumidamente o top 5 da matéria originalmente publicada na Rolling Stone.
5. Queen & Jessie J - We Will Rock You
4. Spice Girls - Wannabe/Spice Up You Life
Céline Dion - The Power of the Dream
Stevie Wonder - Imagine
Björk - Oceania
PÍLULAS CULTURAIS: +LINKS
🎥 - Depois do efeito Divertida Mente 2. A Ancine publicou a Instrução Normativa que garante ferramentas legais para o cumprimento da lei de cota de tela. Saiba mais pela explicação da estudiosa do tema Marina Rodrigues, autora da newsletter “Simplificando Cinema”. (X)
🎵 - Entrevistado na nossa nona edição, Renan Rocha lança o terceiro single. (Spotify)
A exposição “AFROentes: Ancestralidade e Afetos ocorre no Centro de Artes Calouste Gulbenkian, promovendo fotografias, lambe-lambe e instalações que contribuem na valorização da história e cultura afro-brasileira. (Sopa Cultural)
Ficamos por aqui!, até logo